Mate & Bossa é uma troca de cartas entre duas margens afetivas. Uma ponte escrita por
e , entre Rio e Buenos Aires, Buenos Aires e Rio. Um espaço onde palavras viajam com a lentidão do mate quente e a cadência suave da bossa, costurando distâncias e pertencimentos.Buenos Aires, 01 de julho de 2025
Querida Sofi,
Confesso que demorei a começar esta carta. Há sempre algo de vertigem na primeira linha, como se ela fosse um fio que pudesse puxar o restante ou emaranhar tudo de vez. Sinto que são muitas as maneiras de dizer algo a alguém através de um gesto epistolar. Mas decidi seguir um conselho que ouvi do Juan Sklar, um escritor argentino contemporâneo que talvez você conheça, e que certa vez, num workshop de escrita no Centro Cultural Recoleta, nos disse algo que foi o meu maior aprendizado naqueles encontros de verão: “escrever é um ato físico”.
Não é sobre ter mil ideias brilhantes dançando na cabeça, mas sobre o corpo sentado, os dedos em movimento, a presença inteira empenhada em traduzir esse gesto tão complexo que é o pensamento.
Essa semana também me peguei pensando muito no que é, afinal, uma carta. Lembrei daquelas que lia do Caio Fernando Abreu para a Clarice Lispector, e das que eu mesmo escrevia quando menino, ainda tentando decifrar o mundo, suas formas de sentir, seus silêncios. Quase nunca as enviava. Pensei também nos pombos, que antes as levavam com delicadeza e destino, e que, bem, agora já não o fazem mais. Nesse tempo de mudanças constantes, de inteligências artificiais, de urgência cravada em tudo, me perguntei se amanhã, ou daqui a cinco anos, não seremos também como eles: figuras quase invisíveis no céu, às vezes esquecidas, às vezes apenas passando despercebidas. E o que estamos deixando como rastro? O que permanece de nós?
Acho que perdemos algo valioso com o advento das mensagens instantâneas e o desaparecimento quase melancólico das cartas: o espaço do respiro, da pausa, da imaginação. Havia uma poesia em esperar dias, semanas, talvez meses por uma resposta. Essa espera, esse intervalo, também era parte do que se dizia. Às vezes me pergunto quais são os efeitos de vivermos num mundo onde tudo precisa ser agora. E se, talvez, naquele tempo que hoje parece tão distante, as pessoas também se queixavam da tal modernidade da caneta sobre o papel, lembrando com saudade dos dias em que a palavra só existia no olho do outro, dita ali, na presença. Não sei. Há algo de cíclico na queixa. O descontentamento, talvez, seja um aspecto inerente da existência humana.
No fim das contas, o que eu queria mesmo era falar de Buenos Aires para você. Tenho a sensação nítida de que essa conexão que temos com as cidades — você de Buenos Aires no Rio, eu do Rio em Buenos Aires — é o que pode costurar esse lugar comum entre nós. Um lugar que não é lá nem aqui. E também não está no meio do caminho. É o caminho inteiro. Uma estrada sem direção única, que não aponta nem para frente nem para trás. Porque fala do tempo. Fala do que fomos, do que somos, do que ainda não sabemos que estamos nos tornando.
Isso me faz pensar também nas hipóteses quânticas onde dizem que o tempo talvez nem exista e a noção de passado e presente é só uma invenção humana para que evitemos de enlouquecer. E que tudo está acontecendo, agora, ao mesmo tempo. Sempre.
Buenos Aires tem enfrentado dias de frio extremo. É, sem dúvida, o inverno mais rigoroso que já vivi por aqui até agora. As últimas folhas do outono se despediram na semana passada. Eu sei porque tenho uma trepadeira que cobre toda a minha sacada e me avisa, silenciosamente, sobre as mudanças de estação. Talvez seja uma das coisas de que mais gosto no meu apartamento.
Os cachorros já caminham pelas ruas vestidos com seus agasalhos, as pessoas se movem de maneira mais contida, mais apressada, com um humor um pouco menos maleável do que antes. E eu encontro algum refúgio de cor nas caixas de frutas e legumes das verdulerías que se empilham nas calçadas, e que continuam sendo um ponto de respiro em meio à paleta cinza que a cidade vai vestindo nessa época do ano.
Como você deve imaginar, para alguém nascido tão perto dos trópicos, enfrentar essas temperaturas baixas por três meses seguidos não é exatamente uma tarefa simples. Mas a verdade é que gosto de viver em uma cidade onde as estações são mais definidas. Sempre digo como acho fascinante essa coreografia do tempo sobre as coisas. O modo como as árvores se despem, como os dias se encurtam, como o corpo vai se recolhendo aos poucos. Há algo de ritual nisso tudo, uma cadência que me ajuda a perceber o que está mudando fora e dentro de mim. E as vezes me pego pensando, em como pode, nós brasileiros, sermos sol o ano todo?


Apesar de sentir que os portenhos se tornam muito mais mal-humorados no inverno, e de os passeios pelos parques serem menos frequentes, acho que há uma beleza discreta, mas profunda, na introspecção que essa estação nos impõe. É como se as camadas de roupa, a calefação que resseca a garganta, o nariz que insiste em escorrer, tudo isso nos falasse também sobre aqueles dias em que é preciso aprender a se resguardar. Dias em que, talvez, sejamos convidados a entender melhor nossa própria companhia. A escutar o que fica quando o barulho lá fora se recolhe.
Eu sei que aí pra você também têm sido dias de frio no Rio. E, embora as temperaturas aqui estejam bem mais baixas, arrisco dizer que o inverno no Rio de Janeiro é sempre pior. É curioso como dizem por aí que, pra gostar do verão, a gente precisa conhecer o inverno. Mas o Rio nunca parece se incomodar em ser verão o ano inteiro. Ele não sente culpa de ser calor.
Nesses últimos dias, tenho cozinhado mais, lido mais, agradecido tanto pelo teto sobre minha cabeça e pelos casacos que aquecem o corpo. E, inclusive, tenho lido seus textos. E senti, sim, um pouco de inveja. Inveja boa — se é que ela existe assim — porque você escreve em um ritmo que dá pra ver que você domina a estrutura da escrita e desconcerta ela toda. É gostoso de ler.
Os meus textos, às vezes, me parecem narrativos demais. Detalhados até o excesso. Com vírgulas a mais, tropeços pequenos, desvios que talvez não levem a lugar algum. Mas quis te dizer isso porque acredito que a inveja, quando não vem carregada de sombra, revela muito do que queremos pra nós. E o que eu vejo quando te leio é uma admiração intrínseca. Talvez o que eu queira, no fundo, seja escrever tão bem quanto você. Ou melhor: escrever tão livre quanto você.
Nesses dias, tenho me perguntado do que você sente saudade em Buenos Aires — seja nos dias frios ou de calor. Por aqui, mesmo com pouco mais de dois anos vivendo nessa cidade, já carrego uma nostalgia quase instantânea quando me afasto. Às vezes basta cruzar a fronteira, mesmo que seja para visitar a minha própria casa, o Brasil, e já sinto aquela pontada no peito. Uma falta estranha de algo que está tão perto, mas que só existe do jeito que eu aprendi a amar quando estou dentro dessa geografia de ruas arborizadas, fachadas antigas e luz oblíqua no fim da tarde.
E fico pensando também no que você sente falta do Brasil quando está aqui. Porque há uma coragem sutil em sentir saudade de um lugar que não era originalmente nosso. Um lugar que fomos habitando aos poucos, pelas frestas do idioma, pelas coisas que compramos no mercado, pelas conversas que começaram tímidas e hoje lembram lar. Há algo de profundamente comovente em construir pertencimento onde antes havia apenas paisagem. Em insistir até que o corpo reconheça o chão. E talvez o mais bonito seja isso; quando um lugar que parecia estrangeiro começa, aos poucos, a sentir saudade da gente também.
Bem, acho que comecei essa carta sem saber exatamente o que dizer, e acabei dizendo um monte de coisas. Mas acredito que há beleza nessa possibilidade de poder divagar em uma carta, de abrir um tipo de janela na mente pra permitir que o outro entre. E às vezes tá tudo uma bagunça por aqui, mas espero que faça sentido por aí.
Estou muito animado com essa nossa troca, com a ideia de te ler com o mate nas mãos, olhando lá fora as árvores já sem folhas, e imaginar que, de alguma forma, cada nova carta trará um pouco de calor para esses dias tão frios.
Espero que você esteja bem. :)
Com amor,
Dinho.
Al fin llegó! La leo una y otra vez con tu voz, mientras te imagino pintando con tus acuarelas y aceptándome un mate frío. Porque me volví tan gringa que ya no sé cebar! Prometo responder en breve. Un abrazote enorme.